sexta-feira, 1 de junho de 2012

XXVI - Sinceridade doa a quem doer


Certo, lá estava o Rick mais uma vez me ofendendo pra valer; Eu não sou uma pessoa fútil, não sou mesmo, vejam... eu tinha um trabalho digno, podia até não ter me formado no melhor curso da faculdade... mas, tinha sim no meu currículo a faculdade de gastronomia, - coisa que vocês não sabiam - e muitos cursos de mixólogia; E não era porque trabalhava a noite que eu era uma alienada.
Podia até não entender bulhufas sobre hieróglifo, ou não saber o que significava “A ordem dórica”, kouroi e korai para mim eram nomes sujestivos para um casalzinho de gatos, e Mineres dolmens e cromlechs... bom, estava quase certa de que eram nomes de elfos.
Entretanto, isso não significava que eu era uma porta, uma anta, uma ameba! Tinha alguma cultura, - não que eu consiga listar nesse momento - mas, saber coisas desse tipo era para pessoas especializadas, imagino.


Voltemos então ao Rick, e seu suposto ódio por minha profissão:
- Rick, eu não quero brigar com você... não quero mesmo.
- Relaxa, também não estou nada a fim de debater coquetéis estilosos, quando estou com a cabeça cheia de negócios que realmente podem mudar as coisas em Bridgeport.
 - Você dá tanta importância para isso, não é? Se acha o máximo por trabalhar naquela torre espelhada, no seu escritório com visão previlegiada.
- Justine, tenho certeza que pelo menos noventa e oito por cento da população de Bridgeport, gostaria de estar sentada na cadeira que é minha.


- Mas, veja que interessante, você não é o dono... pode ser o gerente geral, mas... aquela torre não é sua, você não manda no seu nariz! Você tem horários, e tem que aguentar aquele monte de gente chata puxando o seu saco todos os dias, você tem que sair pra almoçar com clientes que você não suporta e ainda tem que ir para onde te mandam, então pra mim... isso tudo é uma grande merda, e se você quer saber, Ricardo Inglesson... eu faço parte dos dois por cento que fariam questão de não estarem sentadas na sua cadeira!


Achei que após ter dito umas boas verdades na cara dele, ele iria me botar pra correr, é claro que eu já tinha até colocado os meus olhos na porta, quando Rick respondeu num tom desconfiado:
- Vejo que você e o Lars passaram realmente algum tempo juntos.
- Não entendi.
- Toda essa sinceridade repentina doa a quem doer, “falarei o que penso, e que venham as consequências”. Isso é muito, muito Lars.
 - Que se dane, Ricardo... – Respondi escorregadia, não podia acreditar que tinha entregado os pontos, assim por uma coisa que eu não poderia esperar, fui pega de surpresa, literalmente com as calças arriadas, ou quase lá.


- Você acha isso mesmo? – Rick quis saber, um pouco preocupado, eu o encarei sem captar o conteúdo da questão - Sobre o meu trabalho.
Eu respirei exausta, e respondi:
- Acho.
Então, Rick quis se aprofundar:
- Acha que sou uma marionete na mão dos grandões?
- Não foi isso que disse, absolutamente.
- Mas, me fez refletir... que...
 - Que o quê?
- Ah, Justine... são coisas que você não pode entender.
- Você me acha mesmo uma porta né, Rick?
- Não, não acho... o que eu acho é que você está perdendo tempo com essa história de mixóloga, sabe? Você tem vinte e nove anos, Jussy, tem um diploma em mãos e poderia ter um emprego que te desse mais garantias; Eu sei, que seu emprego é um emprego digno e você se mata de trabalhar pra pagar as suas contas, blábláblá e blábláblá mas no fim... é só isso, o aluguel do apartamento, água, luz, telefone... e o resto? Um veículo, uma viagem mais elaborada... você não pode pagar, pois você trabalha exatamente para pagar só as suas contas, sem se importar com o amanhã.



Parece que aquele era o dia das verdades, pensei em dar um contra golpe no Rick falando sobre a minha rechada poupança... mas ela não existia, quero dizer, ela estava lá no banco desde que eu comecei a trabalhar, mas nunca viu um único centavo do meu dinheiro... estava às moscas há quase dez anos:

- Você acha isso mesmo? – Indaguei, um pouco desnorteada.
- Eu acho... sinceramente.
- Mas, eu gosto tanto de trabalhar como mixóloga... – fiz cara de cachorro abandonado.
- Eu sei que gosta... – disse ele, em tom carinhoso - mas isso é um emprego para garotas, Jussy, e você já não é mais uma garota... é uma mulher de quase trinta anos.
- Uma tiazinha...
- Não, uma mulher apenas.


De repente eu estava arrasada, de repente... meu emprego, aquele que eu gostava muito parecia apenas uma brincadeirinha tola, onde eu recebia uns trocos para me manter e era só, talvez o meu emprego pudesse se tornar um hobby, mas eu não sabia ser muito mais do que mixóloga, apesar do diploma de gastronomia... eu não gostava muito de pilotar um fogão, e também não sabia cozinhar coisas como: “boeuf à bourguignonne acompanhados de batatas dauphinoise” se fosse procurar um emprego, talvez eu o conseguisse como assistente de cozinha do Gordurimensa, para fritar hambúrgueres e batatas fritas, ou seja... isso pode ser comparado ao nível um do “boeuf à bourguignonne acompanhados de batatas dauphinoise” que evidentemente é o nível dez.